"Este projeto foi contemplado pela Fundação Nacional de Artes - FUNARTE
no edital Bolsa Funarte de Residências em Artes Cênicas 2010"

domingo, 27 de fevereiro de 2011

A ESTRATÉGIA

Qual a sua estratégia?

Esse é um dos pontos chaves do workshop de bufão.

No mês de fevereiro, além de fazer exercícios com textos escritos por Gaulier, começamos a trabalhar no quinto ato da peça “UBU REI” de Alfred Jarry, com os personagens Mãe Ubu e Pai Ubu. As parcerias foram surgindo de improvisos durante as aulas, e quem encontra boa cumplicidade junto, está ensaiando essa parte da peça prá apresentar em classe e Philippe sempre dá um direcionamento distinto para cada dupla.
Paralelamente aos exercícios com os textos teatrais, os alunos trazem relatos verídicos ou situações inventadas para encontrar um tema, um assunto a ser dito. Alguns falam de prostituição, outros de racismo, hipocrisia, igreja...Enfim, aos poucos cada um vai clareando para si e para o grupo, a quem você quer atacar, o que você quer dizer, mas principalmente, estamos aprendendo: como fazer isso na linguagem do bufão.
E aí entra a questão da estratégia. Por mais que tenhas um bom assunto, e que seja claro quem ou o que você quer atacar, não podes entrar em cena queimando seus cartuchos, o bufão cozinha muito bem o prato antes de comê-lo.
Além disso, ele deve ser cauteloso e se aproximar de forma gentil, ou divertida, ou inocente, para ganhar a confiança do público e quando este está mais aberto e suscetível, será o momento de dizer ao que veio, dizer a verdade aos “Filhos de Deus”. Denunciar!


Muitas vezes, durante as improvisações em aula, escolhemos assuntos que realmente nos tocam e ficamos tão identificados com o que denunciamos que sofremos junto do texto, ou seja, caímos no melodrama, mas o bufão é livre disso, ele tem a capacidade de rir dos acontecimentos e do seu próprio sofrimento, a capacidade de rir de tudo o que sofreu, liberta-o e permite denunciar tais mazelas.
Um destes exercícios de improviso foi o seguinte: Teríamos que começar a cena dizendo – Porque eu não deveria falar coisas más de...E nessas reticências estão inclusos: negros, gays, judeus, deficientes, imigrantes, putas, ou seja, todos os renegados da sociedade. Tirando sarro desse tipo de pessoa que se acha muito correta, mas que pensa que é falta de liberdade e democracia não poder falar pejorativamente sobre algum tipo de minoria.
Deste exercício surgiu a idéia de criar uma cena para falar do racismo e da forma como os negros são vistos até hoje nas sociedades que os escravizaram como no Brasil e nos EUA por exemplo. Eu já estava trabalhando com um segundo figurino (o primeiro era uma puta sem uma parte dos braços e uma bunda enorme) este segundo é uma negra barriguda.
Escrevi a cena, traduzi para o inglês com a ajuda dos colegas e apresentei esta semana. Os alunos podem dizer os textos em sua língua de origem, mas prá mim está sendo importante fazer o exercício de apresentar em inglês ou francês prá que Philippe entenda bem as intenções desenhadas nas falas. Com a figura da negra barriguda, entrava limpando a casa e dançando ao som de”Patuscada” de Gilberto Gil. Encontrava um chapéu de cawboy e um cigarro em cima da mesa (pertences do dono da casa), vestia o chapéu e começava a falar como um cawboy do sul dos EUA, a partir desta sentença:
Porque não falar a “verdade”, ou falar coisas más sobre os negros...
A cena aconteceu, senti a fragilidade da construção da cena, mas o conteúdo, a forma como falava sobre o tema era consistente e foi o que ficou. Philippe fez algumas perguntas depois da cena, para clarear a situação que havia criado, e pediu que mudasse de figurino, tirando as roupas e maquiagem da negra faxineira e vestindo roupas chiques, sapato alto e maquiagem de mulher da alta sociedade.
Ele propôs que sentasse em um sofá, fumando lentamente meu cigarro, falando com um acento de mulher da alta sociedade, culta, bem educada, blazé. O texto seria o mesmo, mas transposto prá realidade brasileira, o que já agrega elementos distintos. Disse as horrendas palavras racistas com muita calma e polidez e depois ele pediu que começasse lentamente a cantar a mesma música do Gil que tinha utilizado para a entrada na cena anterior, e aos poucos começasse a dançar...A dança, o canto, o prazer iam crescendo até me tirar da cadeira e ganhar o espaço. Dançando para o público como quem dança na avenida, regozijando e deixando aparecer a negra dentro de mim. Depois de alcançar um estado de prazer e alegria elevado, parava bruscamente, respirava e olhando bem prá platéia, dizia: Fodam-se os racistas!
É difícil descrever uma cena, tentado dar a sensação do que aconteceu, mas escolhi descrever esse episódio para exemplificar a questão da estratégia, pois essa aparição de uma mulher muito educada, polida, bem vestida, utilizando belas palavras em seu discurso, possivelmente é mais surpreendente ao dizer coisas horrivelmente racistas defendendo esse discurso de “Porque eu não posso falar mal dos negros” do que uma negra que já entra dançando e depois ainda imita um cawboy. Além disso, apontar o racismo existente no Brasil é muito mais interessante do que ressaltar o existente nos EUA, como se no Brasil não existisse racismo!!!
Outra surpresa aparece quando essa figura elegante deixa transparecer o prazer de ser negro, com a música, o gingado e a alegria. Aí aparece o bufão que se travestiu e se portou como alguém muito bem colocado na sociedade, servindo de espelho para aqueles que também proferem tais discursos e depois mostra o quanto esse tipo de conduta que parece normal, é racista, marginalizante e desumana. E o quanto temos tudo isso dentro de nós mesmos, por nossa educação, por tudo o que já ouvimos de parentes, amigos, programas de televisão. Repetindo, sem nos darmos conta, comportamentos, idéias, ações que julgam e afastam o outro da possibilidade de compartilhar a vida em sociedade de forma respeitosa.

Igualdade – Fraternidade – Liberdade: O que isto significa?

Tá certo, paro por aqui senão daqui a pouco, mudo o direcionamento do blog prá discursos de ordem socialista, ou marxista, ou iluminista, ou ilusionista (hahaha) ou qualquer outro ista que seja, que muitas vezes também se transformou em radicalismo desrespeitando outras formas de ver e viver o mundo....

E Biba La Democracia!!!!

Um comentário:

  1. Querida Roberta! Estou aqui, me deliciando com a leitura de seus relatos. Muito bom compartilhar de seus estudos, insigts e reflexões, sem falar das preciosas descrições do Gaulier dirigindo e dando aula... Parabéns pelo blog e por saber compartilhar suas experiências de forma tão gostosa e ao mesmo tempo didática (= arte ou técnica de ensinar). E também estou me divertindo muito ao me surpreender com verbos na segunda pessoa do singular e construções gramaticais misturadas, com certeza reflexo do seu aprendizado de outras línguas. Tudo isso aproxima a experiência da leitura ainda mais do que estás vivendo!
    Delícia pura, querida!
    Não vejo a hora de ler mais sobre o trabalho de bufão!
    Boa sorte em tudo aí e continue nos presenteando com suas experiências.
    mtos beijos,
    Leticia

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